-- Como vai acabar o Mundo --
Foi o cheiro de pólvora que atraiu o pequeno Heliápiro para o alto da colina. Lá, as crianças mais velhas gostavam de brincar com espingardas de pressão e bombas de São João, estourando latas de leite e explodindo formigueiros. Heliápiro, incauto, pegou 3 bombas numa mão, o máximo que conseguia segurar ao mesmo tempo, dada sua reduzida idade, e as acendeu ao mesmo tempo para ver o que acontecia. Ele perdeu a mão inteira com a explosão, foi isso que aconteceu. A lição que as crianças mais velhas tiraram disso foi que eles deveriam ter sido mais perversos com os vizinhos menores, afim de que tivessem medo e não se aproximassem quando estivessem brincando lá no alto da colina, Heliápiro nem tinha idade para ir à escola, ele não tinha lição alguma, só susto e medo.
Mas nada disso foi mais grave do que viria a acontecer nos anos seguintes.
A dona Gezimuna, mãe de Heliápiro, foi atrás de uma indenização pelos danos físicos e psicológicos que atingiram seu querido filho e conseguiu uma indenização astronômica pelos danos físicos e uma indenização inimaginável pelos danos psicológicos, totalizando uma quantia absurda. A dona Gezimuna pegou metade desta grana e investiu na educação da família inteira, com a outra metade ela montou uma fundação para lutar contra a indústria bélica. 20 anos depois, um dos seus sobrinhos se tornava o melhor, mais preparado, mais competente e o mais foda advogado do Mundo. Foi porcausa dele que a fundação da dona Gezimuna derrubou todos os argumentos a favor das armas, nos debates transmitidos pela TV. As pessoas se tornaram mais "conscientes" e a venda de armas diminuiu 100%. A indústria bélica faliu e os exércitos de todos os países foram se desmantelando paulatinamente ao longo de rápidos 5 anos.
Não havia mais conflito armado, nem de país contra país, nem de grupos terroristas contra refrigerantes, nem de torcidas organizadas, não havia nada. Passou o prazo de validade das maiores armas de destruição em massa e já não se temia mais os mais famosos nomes do Mal. Os políticos perderam relevância. As armas eram coisa do passado, e foi aí que a Era das trevas começou: os noticiários e jornais do planeta tiveram que diminuir seu grau de exigência para notícias importantes, e agora só se falava em celebridades. Na capa da TIME, nas breaking-News da CNN, na primeira página do Washington Post, na tela inicial do Bibi Fonfon, no Em Cima da Hora da GloboNews, na voz de Dan Rather, enfim, em todo veículo de comunicação só se falava no cotidiano de pessoas famosas e até das meio-famosas.
Uma geração inteira cresceu sob esta influência, tendo como preocupação máxima a necessidade de saber como era o côco de seus ídolos, pois todos os fãs o imitariam assim que o vissem.
Logo, para atender a demanda da população por este tipo de conteúdo, as agências de notícias derrubaram a barreira que separava famosos de anônimos, e todo Mundo estava na televisão com seus hábitos comuns e comportamentos exageradamente simples, uma hipervalorização das singelezas das coisas. Você lia jornal para saber coisas como: um homem de óculos limpa suas lentes na praça dos correios, um cachorro fareja as marcações de território feitas pela urina de outro cachorro, uma criança é carregada pela babá na ocasião de andar por uma poça de água. Certa vez o Mundo parou quando assistiu, ao vivo, um restaurador de antiguidades deslocar o ombro numa queda pelas escadarias de uma faculdade em ruínas.
Então chegou o dia em que os lingüistas magos dos 50 maiores idiomas do Mundo se reuniram e concluíram que fama e anomicidade se tornaram sinônimos. Todas as pessoas tinham seus próprios programas de TV, e quem trabalhava na produção desses reality-shows também era astro de programas que mostravam a vida daqueles que trabalhavam em reality-shows. A idéia de "making-of" do "making-of" cresceu tanto que interferiu no comportamento das pessoas, fazendo com que todo Mundo raciocinasse entre parênteses e isso trouxe a vontade em sublimar o ser-presente, como se se deslocasse do "eu-interior" para comentar sobre si mesmo ou sobre o instante em si. Por exemplo, um grupo de amigos conversando, em vez de conversarem sobre assuntos diretos, eles conversam sobre a situação de se estar ali conversando, como se estivessem observando a reunião de fora, como se estivessem assistindo a uma cena, como se fossem astros e estrelas de uma peça e a percepção entre parênteses lhes dessem a sensação de pertencerem também aos bastidores da peça. Mas isso é passado, o que ocorre depois deste tempo todo é que as pessoas conversam sobre o fato de conversarem sobre o fato de conversarem sobre o fato de conversarem, e esta prática concêntrica sempre crescendo, the coolest guy é aquele que mais se distancia do aqui-agora, abrindo o máximo destes parênteses de abordagem de uma situação.
Ninguém se referia mais aos fatos, só ao fato de se referirem aos fatos de se referirem aos fatos, e cada vez mais abordagens em cima de abordagens, até chegar ao ponto em que os fatos concretos ficaram distantes demais do trato da pessoas, e assim o Mundo acabou, você ia ao mercado para comprar alimentos e não conseguia comprar nada, pois tinha o hábito de falar sobre o fato de falar sobre o fato de comprar alimentos, e não conseguia comprar nada ! O serviço de saneamento parou porque os funcionários que se reuniam nas empresas ouviam dos diretores apenas comentários sobre o fato de se falar sobre o fato de se falar sobre o fato de limpar a cidade, e ninguém fazia nada de verdade. A Humanidade morreu de fome, doente, sem tratamento médico, sem gasolina para encher o tanque das ambulâncias, sem eletricidade porque não havia ninguém de atitude para apertar uns botões nas salas de comando das hidrelétricas. Foi o fim do Mundo.
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nota: apesar do texto se referir às armas no começo, eu não estou defendendo o uso de armas como condição para o funcionamento do Mundo, nem o contrário. As armas foram só um gatilho para a viagem e para a brincadeira com o que pode vir a ser o comportamento das pessoas num futuro onde gerações inteiras são educadas pela parte fagedênica da indústria do entretenimento.